De repente apetece-me confessar que todos os textos, mesmo aqueles onde mais ficcionamos, são textos escritos na primeira pessoa, textos no singular, mesmo os menos singulares. Este é portanto um texto desses. Um texto na primeira pessoa e magoado, mal refeito das emoções, uma tatuagem mal cicatrizada, por outras palavras: um texto à flor da pele.
Estive duas vezes ao pé de George Steiner. Numa, com timidez, apertei-lhe a mão, julguei-me eleito, um privilegiado. Foram encontros ocasionais, Steiner falava publicamente, e eu estava numa das filas sombrias mas não frias da plateia e num momento oportunista avancei e lá estava eu embasbacado.
Agradeço à vida ter-me gerado a memória de Steiner – e espero que um dia a idade não a faça soçobrar, a isso a que eu chamo memória, sedimento do que vivi e guardei em lugar próprio.
Os operários do que é intelectual tendem a dar nomes às coisas e a subdividi-las, com medo provavelmente que o que ocorre se vire contra a sua incapacidade de abarcar o universal. Os operários do intelectual erguem com dificuldade os seus martelos, empurram lentamente as suas escavadoras, interrogam-se sobre o que será um cinzel ou uma bigorna, aparatos de intelectuais mais antigos e mais preparados. São esses que põem degraus no pensamento e falam de coisas estratificadas – como por exemplo a obsessão memorial, a vaga memorial ou a cultura memorial. Eu falo agora apenas de evocação. De rememorar neste nosso tempo o que pudermos das memórias escorregadias, tão transitórias, que no chip que as guarda e as formata sobrepondo-as a qualquer outra que a empurre para um limbo incapaz do inesquecível, somos nós a desaparecer quando elas se diluem.
Quando se fala de memória fala-se de linguagem e de silêncio, de recordação e de esquecimento.
Recordar Steiner – que escreveu em 1967 Linguagem e Silêncio, título que agora se impõe evocar para apoio do que aqui se diz -, é enfrentar o ultraje que andamos fazendo à memória, à de cada um e à de muitos de nós, que esquecem o passado como se não fosse o criminoso gerador de muitos crimes do presente.
Steiner que era judeu escreveu sobre um desses crimes que não podemos esquecer, o Holocausto, que mesmo indiretamente nos afetou a todos, que formatou o bom e o mau da cultura que hoje confrontamos, que assinou o declínio que hoje nos reconhecemos e a retrograda passagem ao quarto escuro dos fantasmas que julgávamos circunscritos para sempre. (O pai de Steiner era natural de uma localidade que os nazis baniram do mapa, chacinando quase todos os que ali respiravam. A palavra dizimar, parente do dízimo que as igrejas e os fiéis bem conhecem, teve ali um significado inequívoco). Mas a Europa – o Mundo – conhecem bem o que o mal e o que dele nasce pode fazer à condição humana, às esperanças dos que mais se entregam à esperança da renovação.
George Steiner, parisiense de nascimento, morreu; tinha 90 anos, e morreu em Cambridge, no Reino Unido. E com ele morreu uma das páginas mais intensas da cultura produzida no século XX e ainda neste XXI. Cultura, essa expressão do humano que por vezes é também do humanismo e do progresso, da justiça e da equidade. Como em Steiner.
Ensaísta, crítico literário, filósofo, linguista, ficcionista, melómano, foi um pedaço de memória tão intensa que o mundo não devia esquecer, nunca, o seu legado. Triste é saber também que o mundo desconhece quem foi Steiner e que só uma muito pequena parcela o recorda, num nicho frágil da memória, naquele lugar onde certamente há sons de bombardeamentos a desaparecer sob rajadas intensas de uma música arrebatadora e gloriosa.
Alexandre Honrado
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